domingo, 25 de setembro de 2016

Matrioska

Lana era uma garota esperta, vivia saracoteando por aí. Logo cedo não parava quieta, abria a porta de casa e saía correndo campo a fora, se via árvore subia no seu tronco, de lá do alto pensava que podia voar, de tanto que observava passarinhos e marimbondos. Ensaiava bem um pulo e vinha pro chão de volta, pegava graveto, montava tendas, caçava formigas, colecionava pedras e pedregulhos. Quando era dia de chuva, ela saía com capa e galocha, pulava em poça espalhando água em volta. Sempre, sempre, gostava de estar com outros, adorava quando vinha um cachorro, gato, outra criança... Se apresentava, falava seu nome, idade e convidava pra brincar, esconde-esconde, pega-pega, o último que chegar é a mulher do sapo. Então é a sapa. A sapa na lava a pá, na lava parca na ca, ala mara lá na laga na lava a pá parca na cá, ma ca chaláááá. a canoa virou, borboletinha, tá na cozinha, alecrim dourado que nasceu no campo, xô passarinho da figueira, reguindô, esconda-se bem que já lá vou, Lana corria pra se esconder. Pára, tá na hora de comer! Chamava Alice, sua mãe, lava uma mão, lava a outra, mas Lana não queria parar agora, não queria comer, ou até queria, mas queria brincar mais. E Alice se irritava e ralhava, a menina chorava.
Por cima dessa história, noutro tempo, Alice era uma pequenina menina esperta que vivia saracoteando por aí, corria, subia em árvore, comia fruta do pé, cantava, dançava. Até que chegava a hora do almoço, sua mãe Maria chamava e Alice chorava, sua mãe ralhava. Naquele tempo Alice até levava surra de vara! Diz que era pra obedecer melhor....
Por cima dessa, noutro tempo ainda, Maria era uma menina pequenina e ágil, bem esperta mesmo, vivia saracoteando, gostava de ir até o rio que passava logo abaixo da casa da sua mãe Antônia, no rio nadava, catava pedra, fazia barco de folha seca, pegava até uns peixes. No sol a pino Antônia chamava pro almoço! Maria não ia, gostava muito da água, a mãe já tinha falado que não queria descer até o rio, quando vinha, vinha brava mesmo, pegava Maria pelo braço, puxava ela no ar assim pra cima e batia sem dó nem piedade, sem se importar que estava ficando roxo, que estava rachando a pele, que a menina gritava, urrava de dor. Antônia já tinha falado que não queria descer no rio nessa hora do almoço, tinha entendido bem? Tinha outras coisas pra fazer, estava certo? Maria não tinha juízo, não tinha cabimento, Maria e seus 6 anos mal feitos.

Antônia perdeu a mãe cedo e foi criada pelo pai e pelas tias. Cresceu assim, sempre apanhando quando queria continuar com seus afazeres de criança, suas brincadeiras deliciosas, seu estado pleno de ser. Ela aprendeu desde logo que a criança não pode muito fazer o que quer e consequentemente a vida é pra ser dura e não pra ser vivida, afinal acaba em morte mesmo. Maria cresceu apanhando muito! E também surrava muito Alice, que quando ouvia o choro de Lana que queria continuar brincando, tremia inteira por dentro, algo animalesco a fazia querer ir pra cima da menina, sua pequena filha de 3 anos recém-feitos, cenas grotescas de espancamento inundavam sua cabeça, e ao mesmo tempo uma encantadora e familiar sensação a povoava. Alice bamboleava entre a agressão e a amorosidade e por algum motivo incompreensível maneiras ríspidas se sobrepunham, Alice pegava a filha com força, falava de maneira seca, tom alto, "Lana, AGORA é hora de comer!", mas pra menina o agora era a hora de ser em estado pleno e continuar brincando, criando. Alice enxergava isso naquele brilho do olhar, mas não compreendia, "o que seria isso? Onde estou eu AGORA?" E foi numa epifania, nesse abrir de cascas pelos tempos, que ela lembrou-se de seus 3, 4, 5, 6 e tantos anos de infância brincante AGORA, compreendeu a infância da sua mãe, avó, tias e por aí vai, chorou, se apiedou, perdoou e deixou aquela saborosa comida esfriando no prato, enquanto corria e subia numa árvore de pitangas com toda sua criancice e de sua pequena e mestra filha.


Um comentário:

Sustenido disse...

Que lindo encontrar de novo textinhos seus! Estava com saudade!